Compliance e Partidos Políticos

João Trindade Cavalcante Filho

Professor Universitário, Consultor Legislativo do Senado Federal, Advogado, sócio do Trindade Camara Retes Barbosa Magalhães Pinheio e professor convidado da Fundação Brasil

 

1.     INTRODUÇÃO

A adoção de programas de integridade (compliance) é obrigatória, à luz da legislação em vigor, para os partidos políticos? Quais as vantagens e desvantagens que tal exigência em relação às agremiações partidárias pode trazer? Como andam os projetos de lei que tratam do tema no Congresso Nacional? Essas são algumas das perguntas que pretendemos responder, ou pelo menos discutir.

Podemos, primeiramente, definir compliance como o conjunto de atitudes voltadas à ética e ao respeito às normas nas corporações, o que passa também – mas não exclusivamente – pela instituição e efetiva aplicação de um programa de integridade e códigos de conduta. Nesse sentido, Leonardo di Paula Gomes Cruz afirma que:

“o termo compliance vem do verbo inglês to comply, no qual podemos entender que significa estar de acordo com as normas, seja ela interna ou externa, essas já antecipadamente estruturadas pelo seu titular ou por aquele no qual se mantém relação. Os programas de compliance visam [a] ser uma das ferramentas de controle, bem como de prevenção a prática delituosa por parte das pessoas jurídicas, ainda com a previsão à lei anticorrupção, de mitigar sanções quando devidamente comprovado que estava sendo utilizado de forma correta, pois não basta a alegação que havia implantado o sistema de conformidade. Há de ser vislumbrado que os programas de conformidade estão intrinsecamente ligados à questão da governança corporativa, que tem como finalidade criar um conjunto de medidas no direcionamento de estabelecer marcos regulatórios dentro do segmento das relações empresariais, assim sendo considerado nos dias atuais como condição sine qua non nas atividades negociais (...).

Os programas de compliance não exaurem sua finalidade apenas com a prevenção ou adoção de medidas anticorrupção ou ainda com a minimização dos riscos entre pessoas jurídicas no âmbito empresarial. Porém, tem como um de seus propósitos à implementação de normas internas, inclusive éticas, no qual seu reflexo ajudará a evitar práticas ilegais e normatizar a forma de relacionar com os clientes e fornecedores. Assim, podemos afirmar que tem como finalidade essencial construir um ambiente propício para as boas práticas tanto internamente como perante terceiros.

A questão do compliance e dos programas de integridade tornou-se mais conhecida no Brasil quando a Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013), previu, no art. 7º, que serão levados em consideração na aplicação das sanções: (...) VIII - a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica. Ou seja: estabeleceu-se que a existência de um efetivo compliance na instituição atenua a responsabilidade desta por atos de corrupção de seus agentes.

Estamos entre os que defendem que a Lei Anticorrupção já é, por si só, aplicável aos partidos políticos, em virtude do que consta no parágrafo único do art. 1º. Assim sendo, pensamos que aos partidos já seriam também aplicáveis as penalidades previstas nesta Lei, em caso de verificadas as condutas ilícitas nela descritas, sem prejuízo da atenuação da responsabilidade caso a agremiação partidária possua programa de integridade (em virtude do citado art. 7º, VIII, da Lei nº 12.846, de 2013). Todavia, é de se reconhecer que essa tese da aplicação direta da Lei Anticorrupção aos partidos é controversa, o que justifica o debate sobre a explicitação de tal situação por meio de ato legislativo.

1.     VANTAGENS E NECESSIDADE DE ADOÇÃO DO COMPLIANCE POR PARTIDOS POLÍTICOS

A responsabilização de partidos políticos por atos de corrupção praticados em seu nome ou em seu benefício realiza(rá) os mandamentos do art. 7, alínea 3, e do art. 26 (alíneas 1 a 4) da Convenção das Nações Unidades para o Combate à Corrupção (CNUCC). Trata-se, como mostram as recentes investigações no âmbito da chamada “Operação Lava-Jato”, de uma verdadeira necessidade, especialmente quando agremiações partidárias de vários matizes ideológicos passam a funcionar como verdadeiros entrepostos de corrupção.

Igual entendimento é partilhado por Aldacy Rachid Coutinho e Marco Aurélio Marrafon, para quem:

Na seara eleitoral, a situação é mais grave e demanda urgentes medidas. A sociedade de risco gerada em tempos obscuros, marcados pela grande fragmentação axiológica na base social, por radicalismo e por simplificação de questões políticas complexas, a população “bombardeada” por falsas notícias (fake news) e a cultura democrática ainda imatura e em formação demandam a adoção de práticas de conformidade e de integridade, aliada a políticas antifraude e anticorrupção eleitorais, ações não apenas importantes, mas essenciais para que se possa falar em soberania popular e, ao mesmo tempo, em realização do direito.

A implantação do compliance eleitoral traz benefícios evidentes no estabelecimento de diretrizes assentadas na ética, na transparência e no estrito cumprimento da legalidade, atuando na mitigação de riscos para os partidos e no relacionamento do candidato com doadores, com eleitores, com candidatos parceiros de coligação, com fornecedores e prestadores de serviços, com autoridades públicas e mesmo com a Justiça Eleitoral. É importante destacar, ainda, a conduta do candidato em relação à propaganda eleitoral e o uso das mídias sociais.

Há, porém, vários meios de se prever ou estimular tal conduta por parte das agremiações partidárias, seja atenuando as punições por atos corruptos de seus agentes, seja impondo a adoção de programas de integridade pelos partidos.

De um lado, pode haver um óbvio interesse dos partidos em adotar o compliance, como forma de evitar ou minimizar as punições por atos de corrupção. Veja-se, por exemplo, o caso do então Partido Progressista, que, até onde nos consta de forma inédita, foi objeto de ação de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público Federal (MPF), no âmbito da Operação “Lava-Jato”, por desvios sistemáticos de recursos da Petrobras.

Por outro lado, há argumentos relevantes para se impor (obviamente pela via legal) aos partidos a adoção de programas de integridade. Isso se faz com base na necessária distinção entre a facultatividade da adoção do compliance pelas empresas privadas e a necessidade de sua implementação nas entidades que, embora privadas, lidam direta ou indiretamente com recursos públicos, como é o caso dos partidos políticos (Constituição Federal, art. 17).

Há mais: a adoção (obrigatória ou facultativa) do compliance pelos partidos pode ter o efeito de melhorar aspectos de governança dessas instituições hoje tão desacreditadas. A doutrina especializada destaca a questão de possíveis ganhos de democracia intrapartidária:

a evolução tímida da democracia intrapartidária é obscurecida quando se propõe uma análise dos partidos, a partir da governança. As agremiações, seja pela ausência de Lei que obrigue, seja pelo desinteresse dos seus caciques ou pela ausência de fiscalização do Estado não implementam regras modernas de governança capazes de assegurar maior transparência, previsibilidade e, consequentemente, confiança. Em recente pesquisa divulgada pelo movimento intitulado Transparência Partidária, foi constatado que dos 35 (Trinta e cinco) partidos registrados no TSE, 33 (trinta e três) estão com níveis de transparência abaixo de 1,0, levando-se em consideração que a metodologia aplica notas de 0 a 10.

Nesse contexto,

A solução que se pretende construir a partir do compliance aborda todos os aspectos de uma organização empresarial e/ou pública e também partidária, construída sob alicerces, dentre eles, regras claras e de conhecimento de todos, códigos de ética e condutas, comprometimento de todos, inclusive da mais alta direção partidária, programa de integridade, canais de denúncia geridos por terceiros. (...)

O programa de conformidade deve envolver toda a estrutura do partido político, desde a alta cúpula, os profissionais das áreas com maior potencial para cometimento de práticas antiéticas, como setores com pequeno risco, pois o que se pretende é instituir uma cultura universal de cumprimento das normas e regimentos envolvendo e comprometendo a todos os integrantes do partido É nessa linha que o compliance surge como a solução para a crise de confiança da população nos partidos brasileiros, eis que garante a adoção de procedimentos com ampla transparência, além de um conjunto de procedimentos confiáveis, que tragam resultados previsíveis e um plano de contenção e proteção contra o suborno, sendo este o caminho para partidos angariar melhores resultados e trazer de volta a confiança que um dia o fez o centro do regime democrático.

É preciso, porém, não depositar esperanças excessivas na capacidade de a legislação alterar uma realidade adversa. Há obviamente aspectos culturais e estruturais que podem dificultar ou impossibilitar a efetividade de uma legislação sobre compliance de partidos políticos.

2.     PROJETOS DE LEI DO SENADO SOBRE O TEMA

Especificamente acerca do tema compliance e partidos políticos, há três proposições em andamento no ou oriundas do Senado em tramitação.

Primeiramente, podemos citar o Projeto de Lei da Câmara (PLC) nº 80, de 2016, oriundo das chamadas “10 Medidas contra a Corrupção” do MPF. Tal como aprovada na Câmara dos Deputados, a proposição passou a prever “a criação, pelos partidos políticos, de mecanismos de integridade (compliance), inclusive como atenuante à sua responsabilização por atos de corrupção (arts. 19 e 20 do PLC nº 80, de 2016)”.

Trata-se de alteração semelhante ao escopo do Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 60, de 2017, de autoria do então Senador Ricardo Ferraço. Pretende-se inserir na Lei Orgânica dos Partidos Políticos dois novos artigos (arts. 30-A e 37-B), para prever a responsabilização objetiva dos partidos políticos por atos de corrupção de seus dirigentes, com a previsão de atenuação se houver programa de integridade efetivamente aplicado (sistemática semelhante à da Lei Anticorrupção). Tal PLS foi terminativamente aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal (CCJ), e encaminhado à Câmara dos Deputados, onde aguarda revisão (Constituição Federal, art. 65, caput).

A doutrina especializada costuma apoiar tal proposição:

Se vier entrar em vigor o projeto de lei, será um grande passo em busca da moralidade e controle dos gastos, pois ocorrerá fiscalização efetiva também pela sociedade, ou seja, uma grande vitória, contudo o futuro mostrará se haverá resistência pelos partidos para que se implante os programas de compliance.

Ao se tornar lei o projeto do Senado n° 60/2017, os partidos políticos terão a seu favor e como meio de incentivo, as benesses previstas na Lei nº 12.846/ 2013, pois caso venha a ocorrer alguma prática de ilicitude por agentes partidários, terão o mesmo atenuante como forma de mitigar a sanção.

Diferente é a sistemática adotada no PLS nº 429, de 2017, de autoria do Senador Antonio Anastasia. No resumo de Marrafon e Coutinho, “Se no Projeto de Lei nº 60/2017 há uma forma de incentivo ao programa de integridade, ele se torna obrigatório enquanto previsão no seu estatuto no Projeto de Lei nº 429 do mesmo ano.”. Com efeito, o PLS nº 429, de 2017, traz uma detalhada exigência a ser inserida na Lei dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995), para instituir a exigência de mecanismos fortes e efetivos de controle, auditoria interna, apuração de denúncias e punição dos infratores. Prevê-se, ademais, a suspensão de repasses de valores do Fundo Partidário para a agremiação que descumprir essas determinações legais sobre integridade. Tal proposição, após receber parecer favorável da CCJ, encontra-se pronta para a deliberação do Plenário deste Senado Federal. Parece-nos uma alteração bastante meritória, ainda mais se levarmos em conta a supracitada necessidade de uma exigência mais forte de compliance das instituições que, não obstante privadas, manejam recursos e políticas públicas.

3.     CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de todo o exposto, percebe-se que a discussão sobre compliance e partidos políticos, no Brasil, encontra-se em estágio relativamente avançado. É objeto de estudos doutrinários específicos, e já foi tratada em algumas proposições legislativas. Isso pode ser atribuído, inclusive, à crise de representatividade e de legitimidade que tais instituições vivenciam em nível mundial, e particularmente entre nós.

É preciso, no entanto, definir qual o modelo que se vai preferir seguir: a facultatividade da adoção do compliance, como atenuação da responsabilidade por atos de corrupção (PLS nº 60, de 2017), ou a imposição de que tais mecanismos sejam adotados pela agremiação partidária (PLS nº 429, de 2017), posição que nos parece mais adequada.